Emenda Constitucional nº 96, de 06.06.2017: a discussão circular e interinstitucional sobre a fundamentalidade da vida

Reflexões Atuais

Em maio de 2013 a Procuradoria Geral da República (PGR) propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade contra Lei do Estado do Ceará que regulamentava a prática da chamada Vaquejada naquele Estado (Lei Estadual nº 15.299/2013). Pouco mais de 03 (três) anos depois, em 06.10.2016, por meio de Decisão Plenária e por apertado “placar” de 06 votos a 5, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) - apesar de votos com fundamentações distintas terem dado ensejo ao mesmo resultado final (questão e problemática da mais alta Corte do país a não ser aqui aprofundada) -, pela inconstitucionalidade da Lei, com entendimentos de que a crueldade contra animais seria, por exemplo, inerente à própria Vaquejada, não havendo como se cogitar de sua existência sem maus-tratos ocorrerem com os animais envolvidos. Precisamente 13 (treze) dias após, ou seja, em 19.10.2017, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 50/2016 no Congresso Nacional. Seu objetivo: alterar a Constituição para nela incluir o parágrafo sétimo em seu Art. 225. E o teor de tal novo parágrafo seria exatamente o de excepcionar a previsão contida no inciso VII, do parágrafo primeiro, do Art. 225, para permitir, em favor do direito à cultura, a prática de atividades culturais desportivas com animais, cabendo a uma lei posterior criar limitações a atos considerados cruéis contra os mesmos animais envolvidos. Até o início de junho de 2017, a referida PEC 50/2016 manteve-se como Proposta, não fosse sua aprovação e transformação em Emenda em 06.06.0217, conforme desde o início anunciado. Tal Emenda, em menos de 01 (um) ano, derrubou a declaração de inconstitucionalidade do STF e tornou novamente possível a Vaquejada no Ceará e no país. Até a elaboração deste breve texto, 03 (três) já foram as ADIN’s propostas contra a Emenda Constitucional nº 96/2017, decorrente da aprovação da PEC nº 50/2016. Uma delas proposta pela mesma PGR, provocadora inicial do Poder Judiciário em 2013. Independentemente dos novos resultados futuros, com discussões tradicionais sobre a possibilidade ou não de declaração de inconstitucionalidade de Emendas à Constituição (BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais?), fato é que mais uma acirrada disputa entre instituições já se instaurou. Judiciário, na figura do STF, versus Legislativo, na figura do Congresso Nacional. Mas, nas entrelinhas do conflito institucional e de suas particularidades, aqui se quer chamar a atenção para um ponto analítico-aplicacional chave. O entender ora esboçado é o de que a clássica técnica da ponderação de direitos e princípios fundamentais deve ser evitada neste caso concreto. E isto porque se entende que ponderar os Artigos 215 (que cuida mais diretamente da cultura e direitos decorrentes) e 225 (que cuida do ambiente, sobretudo natural) não se torna válido se a essência de outro direito fundamental de suma importância e que tanto cultura, quanto ambiente, ou devem proteger ou àquele estão umbilicalmente ligados, está sendo frontalmente atacada. Concebendo-se os direitos fundamentais como integrantes de uma linha circular, com o direito à vida ocupando um espaço de destaque na parte superior do círculo, o movimento deste mesmo círculo em sentido horário e virtuoso faz com que todos os direitos fundamentais consigam conviver harmoniosamente e sem atingirem o cerne e o conteúdo básicos uns dos outros. Mas, se um direito como o à vida, que engloba, contemporaneamente, os próprios ambientes natural e artificial, vem a ser atacado em seu âmago por outro direito fundamental que, sob qualquer argumento, não é capaz de justificar o referido ataque com argumentos constitucionalmente possíveis e dignos de representar uma abertura de exceção aplicacional no direito atingido, forma-se uma situação de desarmonia no mesmo círculo a que já se fez menção, com uma viciosidade se sobrepondo à virtuosidade. Como defender, sob qualquer prisma, que a cultura possa justificar o comprometimento do direito à vida, entendido em seu amplo conceito, que inclui as noções de estar vivo, ter vida digna e proteção do ambiente? Ora, a cultura, assim como uma plêiade de direitos, deve respeitar a vida e outros direitos fundamentais, e a garantia dos direitos daquela (cultura) decorrentes terá sentido e razão de existência em função da própria e circular proteção ao direito à vida. Qual o sentido de se proteger uma cultura da Vaquejada se a vida está sob ameaça e em xeque? Que, então, se proteja a cultura da caça esportiva de animais silvestres sob o mesmo argumento? Proteja-se o patrimônio histórico-cultural sobre casas em deterioração e/ou com riscos altíssimos de desabamento e onde residem famílias sem capital e condições jurídicas para sua manutenção? Enfim, que se proteja a cultura da moradia de gerações familiares em áreas de encosta, onde há real e verdadeiro risco de desabamento e deslizamentos, a partir da invocação dos mesmos ou de ainda outros direitos fundamentais, em contraposição à defesa maior da vida? Não é porque a torcida do Flamengo é bem cultural imaterial (patrimônio imaterial, nos termos do Decreto nº 28.787, de 04 de dezembro de 2007) que se permitirá que maciçamente comece a praticar ou incentivar atos constantes de vandalismo e atentado à vida, qualquer que seja ela, humana ou animal. E não será porque um direito à liberdade é fundamental e diretamente ligado ao direito cultura que se defenderá o sacrifício de pessoas humanas ou o mais frequente e, ainda nos dias de hoje, de animais. Não fosse assim, que se tivesse mantido como legal a tão culturalmente difundida prática de levantar balões aos céus, ignorando vidas perdidas quando de seu voo ou de sua queda, potencial causadora de grandes incêndios. Isso tudo significa dizer que cultura, várias liberdades e outros tantos direitos não são importantes nem fundamentais? Não e, muito pelo contrário. São tão importantes e fundamentais que devem incutir a ideia de que sem a vida, frise-se, em seu sentido mais amplo, não faz sentido lutar pela cultura e cultuar o que quer que seja. Frear círculos viciosos não é tarefa fácil. E se fosse, atrocidades do passado não teriam ocorrido, apesar de com muita luta terem gradativamente sido superadas pela conquista gradual da proteção humana e dos direitos fundamentais. B, L.