CONVERSAS, GRAVAÇÕES, DIVULGAÇÕES E FUNDAMENTALIDADE: discurso recorrente mas de repetição cada vez mais obrigatória

Reflexões Atuais

Desde a promulgação da Constituição de 1988 e, paralelamente, do avanço tecnológico em matéria de telecomunicações e informática, no país se realizam gravações de conversas entre pessoas. Gravações ambientais, presenciais e telefônicas figuram entre as mais comuns e, de uma maneira geral e inicial, podem ser encaradas de duas formas. Uma primeira, entendida como legal e constitucional, é a ligada a gravações que acontecem com a concordância e, portanto, ciência e consentimento de todos – sem exceção – os envolvidos em uma determinada conversa. Uma segunda, por sua vez, em relação à qual pairam as maiores controvérsias teóricas, práticas e jurisprudenciais, relacionada a gravações que acontecem quando, pelo menos uma das pessoas presente em uma conversa, não sabe que está sendo gravada. A partir desta, sobretudo, segunda forma, é que alguns comentários serão tecidos, sob um viés primordialmente constitucional. A Constituição da República, em seu Art. 5º, incisos X, XI e XII, trouxe uma série de direitos de liberdade que, se interpretados sob determinado prisma, revertem-se em chamadas inviolabilidades. O Art. 5º, inciso X, versa sobre os direitos à imagem, privacidade, intimidade e honra das pessoas, garantindo serem as mesmas invioláveis. O inciso subsequente, coerente com a previsão do inciso X, garante a inviolabilidade de domicílio, trazendo apenas quatro exceções, na ocorrência das quais pode ter lugar uma violação de domicílio, sem o consentimento do morador: casos de necessidade de atuação para evitar ou coibir a prática de um crime em manifesta situação de flagrante delito, casos de desastre, em que uma violação pode se fazer necessária para mitigar efeitos ou mesmo evitar o referido episódio trágico, casos de necessidade de prestação de socorro no interior de um domicílio e, por fim, casos de cumprimento de ordem judicial, durante o período entendido como diurno. Por fim, o inciso XII do mesmo Art. 5º, do texto constitucional brasileiro em vigor, declara serem sigilosas as comunicações telegráficas, de dados (bancários e fiscais, por exemplo, salvo, sempre exceções trazidas pela própria Constituição), assim como telefônicas, sendo apenas permitidas gravações, neste último caso, mediante a presença de três requisitos, a saber, (a) ordem judicial, (b) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal e (c) nos termos de lei infraconstitucional complementadora da Constituição da República. Se um resumo dos referidos dispositivos, previstos em série na Constituição, pode ser aqui sugerido, é o seguinte: vige, no Brasil, o respeito à intimidade e à privacidade das pessoas, direito fundamental de amplitude considerável e que vai desde a proteção de relações de cunho mais íntimo, até a proteção do domicílio, de conversas privadas e de informações consideradas particulares. Na verdade, em uma democracia que sucedeu um regime autoritário e ditatorial, no qual direitos fundamentais como os ora enumerados, entre tantos outros, eram comumente desrespeitados, quis o legislador constituinte ser protetivo. E, mesmo se projetando as referidas normas décadas adiante, aqui se entende que não perderam sua força, dada a necessidade não somente local e regional, mas também global, de cada vez maior garantia dos direitos fundamentais, ainda mais quando constitucionalizados em ordenamentos jurídicos. Assim, a título ilustrativo, posicionam-se juristas internacionalmente conhecidos, um dos quais, o italiano Luigi Ferrajoli (entre tantos escritos, conferir “La democrazia attraverso i diritti: Il costituzionalismo garantista come modello teorico e come progetto politico”). Pois bem, neste cenário, em 1996 foi criada a Lei 9.296, a fim de cumprir o mandamento constitucional, preencher requisito faltante e dar eficácia plena à parte final, do inciso XII, do Art. 5º, da Constituição de 1988, além, logicamente, de melhor detalha-lo e lapida-lo. Tal Lei ficou conhecida como “Lei das Interceptações Telefônicas” e, mais coloquialmente, “Lei do Grampo”. Sem maiores divagações sobre suas características, boa parte delas de fácil compreensão, até mesmo por cidadãos leigos em matérias jurídicas, fato é que, entre os incisos constitucionais acima citados, o único que dependia de complementação infraconstitucional, obteve-a por meio da edição da mencionada Lei 9.296/96. Interceptações telefônicas são, assim, possíveis, desde que respeitem a Constituição e a referida lei complementadora. E, no tocante a demais gravações de conversas, se acontecerem sem o consentimento de, pelo menos, um dos interlocutores, serão consideradas gravações denominadas clandestinas. Decisões em variados Tribunais brasileiros já entenderam ser tais gravações meios cabíveis de prova, embora o aqui Autor entenda, com base, também, em boa parte da jurisprudência brasileira, que podem, muito eventualmente, servir apenas como meio de defesa, mas, jamais, de acusação. Pois, como o próprio nome já induz, são escondidas, descabidas, ou melhor, clandestinas. Entretanto, em que pese a intimidade e a privacidade das pessoas serem o grande direito fundamental a ser protegido, o custo e o peso deste avanço democrático, constitucional e social não vêm sendo suportados no Brasil. Parece, inclusive, viger, no país, uma lógica contrária, de cabimento irrestrito de gravações, em relação às quais o sigilo exigido, por exemplo, pelo próprio Art. 8º da Lei 9.296/96, é completamente ignorado, tendo a indústria midiática não apenas acesso, mas também decisiva participação de não cumprimento das ordens constitucionais. Pois, para além de um não sigilo, uma publicização com alcance gigantesco é promovida quando veículos de comunicação de massa têm acesso a informações até então secretas e de grande potencial de audiência. É certo que, no Brasil, também vigora a ampla liberdade de imprensa, com a qual concorda integralmente o aqui Autor. Mas uma liberdade que não pode ser usada para o desrespeito de outras normas constitucionais fundamentais, sobretudo em descumprimento a normas legais e, concomitantemente, uma liberdade que careça de leis infraconstitucionais completadoras da Constituição e capazes de criar diretrizes à atividade midiática, sem representarem, certamente, qualquer restrição indevida à liberdade de imprensa. Pois, lapidar, detalhar e, muitas vezes, criar subregras e subprincípios, é dever do legislador para a garantia do próprio sistema de direitos fundamentais constitucionalmente sedimentado, dentro do qual boa parte de importantes direitos possui limitações, restrições e é obrigatoriamente relativizada, sem que se atinjam núcleos essenciais e, muito pelo contrário, somente proporcione uma maior integração e conformação do ordenamento jurídico e da ordem constitucional. Enfim, é certo que investigações de múltiplos tipos e oriundas de setores também variados – alguns dos quais o da própria imprensa, assim como polícias etc. - são indispensáveis e precisam ocorrer para que sejam garantidas as próprias e mesmas liberdades substantivas (conferir Amartya Sen: “Desenvolvimento como Liberdade”). Mas com a imprescindível e na mesma medida garantia de uma das bases de um Estado constitucional e democrático de Direito, isto é, o chamado devido processo legal. Nesse sentido e, por derradeiro, retomando a questão central deste breve Texto, se o Brasil não reverter o caminho que vem sendo trilhado, já há bastante tempo, em matéria de defesa da intimidade, privacidade, honra e imagem de pessoas, como regra geral e norte maior a ser seguido, mantendo o rumo de prevalência de quebras generalizadas de sigilos e inviolabilidades (consideradas, para todos os fins aqui presentes, aquelas que desrespeitam o mencionado devido processo legal), com cada vez maior rapidez todos os cidadãos brasileiros sentirão as consequências de uma nação na qual direitos fundamentais dura, árdua e historicamente conquistados minguar-se-ão e se intimidarão, com a promoção e evolução de tudo que se deve evitar em qualquer ordenamento minimamente desenvolvido: a segurança jurídica, máxime em matéria de fundamentalidade de direitos. B, L.