INTERPRETAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO: STF x poder constituinte

Reflexões Atuais

Em julgamento de Recursos (602.043 e 612.975) relativos a matéria entendida como de repercussão geral, no dia 27 de abril de 2017 o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível que um servidor público – no sentido mais amplo da expressão – recebesse acima do teto remuneratório constitucional. E isto no caso específico em que a Constituição permite a cumulação de cargos, tais como nos casos do Art. 37, inciso XVI, alíneas “a”, “b” e “c”. Os principais argumentos foram os ligados aos princípios da igualdade e da valorização do trabalho humano, pois seria, segundo a interpretação dada pela cúpula do Poder Judiciário, injusto um servidor público exercer 02 (duas) funções, em dois cargos e, por exemplo, caso recebesse já o teto em um deles, findar por não ser remunerado pelos outros cargo e função exercidos. Chegou-se a invocar a própria norma da irredutibilidade de subsídios. Entretanto, aqui são trazidos à tona alguns questionamentos. O primeiro deles diz respeito, em breves linhas, à ampla possibilidade interpretativa, sempre ligada a métodos e meios, muitos dos quais já bem e bastante trabalhados por inúmeros teóricos, sobretudo do Direito Constitucional e de Teoria Geral do Direito, no Brasil e fora dele. Peter Häberle, J. J. Gomes Canotilho, na Alemanha e em Portugal, respectivamente, assim como Inocêncio Mártires Coelho e Lenio Streck, entre tantos, no Brasil, são bons exemplos de constitucionalistas que se debruçaram, cada qual à sua maneira, sobre o assunto. De todo modo, aqui se crê que já se passou da hora de se recuar, ainda que singela e sutilmente, na interpretação que se vem conferindo à própria tarefa interpretativa. Na hermenêutica da interpretação ou na interpretação da hermenêutica. E, sem se perder em elucubrações e devaneios, inclusive semânticos e gramaticais, vai-se direto ao ponto: há muitos casos em que a norma, constitucional ou infraconstitucional, é de clareza meridiana. Nestes casos, apesar de serem defendidas interpretações, sempre a partir da possibilidade quase ilimitada dada aos intérpretes oficiais das normas jurídicas (principalmente, mas não somente, os magistrados), preponderantemente ou, até mesmo, em todos os casos, deve-se direta, imediata e, como se aprecia utilizar como expressão, literalmente, interpretar e, por conseguinte, aplicar a norma jurídica. E isto pela lógica razão de a própria norma ter sido clara o suficiente para evitar outros desdobramentos interpretativos. Entretanto, ao contrário da ideia de se evitar interpretações que findam por se transformar em verdadeiras construções, os Tribunais brasileiros se habituaram a criar, inovar e atuar conforme melhor lhes convêm, técnica e juridicamente falando. E, para aguçar a problemática, não somente a partir de normas infraconstitucionais, mas também de normas constitucionais, ou seja, inseridas no corpo da Constituição. Veja-se, como exemplo, o caso ora em tela. Nesta breve reflexão se entende como claríssimas as previsões contidas nos incisos XI, XV e XVI, do Art. 37, da Constituição da República. O inciso XI prevê que “a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos (…), percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (…)”. O inciso XV menciona a irredutibilidade de subsídios, mas, expressamente, remete à necessidade de respeito ao teto previsto no apenas mencionado inciso XI. E, por fim, o inciso XVI, sempre do Art. 37, da Constituição da República, traz as possibilidades excepcionais e taxativas de cumulação remunerada de cargos públicos, quando houver compatibilidade de horários, mas sempre “observado em qualquer caso o disposto no inciso XI”. Assim, se um primeiro questionamento fez brevíssima menção a possibilidades hermenêuticas, outros dizem já respeito às normas que regulam a Administração Pública, previstas no texto constitucional e, paralelamente, ao seu grau de clareza. Respeitadas, sempre, opiniões distintas, entende-se que, uma coisa, por um lado, é a defesa da Constituição frente às ameaças infraconstitucionais; outra, por outro lado, é a interpretação das próprias normas contidas na Constituição. E, quanto a estas, um, no mínimo, redobrado cuidado, deve-se ter quando de sua análise e exame pelo Supremo Tribunal Federal, seja em casos concretos com os quais se depara, exercendo o controle repressivo difuso de constitucionalidade, seja em casos objetivos, em tese e ligados ao controle repressivo concentrado de constitucionalidade. Pois, mesmo que tais controles tenham por base provocativa um conflito entre normas infraconstitucionais e a Constituição, pode vir o mesmo Supremo Tribunal Federal a se deparar com a chance de examinar, interpretar, reinterpretar ou, quiçá, reinventar dispositivo constitucional. Foi assim no caso do princípio da presunção de inocência, em relação ao qual não se tecerão, neste momento, maiores considerações, tendo em vista que já abordadas em outras ocasiões, por quem aqui escreve; e parece ser o que ora, novamente, guardadas e respeitadas as devidas diferenças e proporções de abordagem, ocorreu no julgamento de 27 de abril de 2017: uma decisão do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, de acordo com o Art. 101 desta última, findando por direta e ostensivamente opor-se ao legislador constituinte, ora originário, ora derivado reformador. Algo a se refletir com atenção, de modo a se estimular o debate sobre, entre tantas questões, o que se espera, principalmente no presente e, igualmente, no futuro, da cúpula do Poder Judiciário brasileiro, por muitos, mas, não neste pequeno e simples espaço, formalmente considerado um Tribunal ou Corte Constitucional, nos clássicos e originários moldes previstos por Hans Kelsen, Carl Schmitt e outros tradicionais estudiosos do tema. B, L.