GARANTIA DO DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA E PROTEÇÃO DO AMBIENTE NATURAL: direitos constitucionais compatíveis?

Ação e Reação

Ricardo Pereira Lira
Professor Emérito da UERJ

Desde os tempos modernos que se pensa na propriedade e na sua função social. Essa é uma noção que já estava nas lições de DUGUIT, eminente jurista francês, na sua clássica obra “Les Transformations Géneralesdu Droit Privé” ‘(depuis de Code Napoleon)’”, ed. 1920, Paris, Librairie Felix Alcan. Já estava igualmente na Constituição Mexicana de 1917, bem como na Constituição de Weimar, que, em seu artigo 153, estipulava que a propriedade obriga o seu titular, e seu uso deve estar a serviço do bem comum.

Começava a desvanecer a postura individualista, segundo a qual o senhor de um bem tem a faculdade de usar, gozar e dele dispor, e de reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha. É uma concepção que exibe os requisitos da propriedade quiritária, do velho direito romano. A propriedade quiritária era privativa dos patrícios e era regulada pelo Jus Civile, sendo suas normas rígidas e formais, podendo recair sobre bens e imóveis que estivessem em solo romano. A ela se opunha a propriedade pretoriana, que podia ser exercida pelos não patrícios, pelos estrangeiros e sua aquisição era despida de maiores formalidades.

Modernamente, a propriedade passou a consubstanciar obrigações positivas de seu titular para com o grupo social.

É interessante observar que, ciclicamente, momentos há na história da humanidade em que, episodicamente, o proprietário sofreu limitações profundas, na dependência de imposições sociais.

A Lex Licinia Sexta, de 367 AC, por exemplo, autêntica lei agrária, proibiu os cidadãos romanos de terem mais de 120 hectares de terra, não permitindo nas pastagens públicas mais de 100 cabeças de gado por proprietário e obrigava que eles utilizassem mão de obra livre na mesma proporção de escravos que possuíssem. O objetivo desta lei romana, além de limitar o tamanho das propriedades de terra, era o de enfrentar o problema do desemprego que na época existia em Roma.

Nítida nessa lei a função social da propriedade, demonstrando que, na modernidade e na contemporaneidade, o surgimento desse princípio não constituiu novidade alguma.

Em nosso ordenamento jurídico, o princípio da função social da propriedade está presente na Constituição de 1934, bem como na Constituiçãode1946 (esqueçamos a Constituição ditatorial de 1937), embora nelas o princípio não se encontre expresso sob a denominação “função social da propriedade”. O princípio consta com essa denominação na Constituição de 1967, e, posteriormente, na Emenda Constitucional de 1969.

Atualmente, está consignado no artigo 5?, incisos XXII e XXIII, da Constituição de 1988, onde se afirma que “é garantido o direito de propriedade”, no primeiro inciso citado, e se estipula que “a propriedade atenderá a sua função social”, no segundo inciso referido.

No artigo 182, § 2?, sob a rubrica “Da Política Urbana”, estatui-se que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da Cidade expressas no plano diretor”, que há de ser implantado pelo Município.

Ao cuidar dos imóveis rurais no artigo 184, caput, a Constituição de 1988 determina que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social.

No artigo 170, ao indicar os princípios gerais da atividade econômica, a Constituição de 1988 elenca entre eles o princípio da propriedade privada e o princípio da função social da propriedade.

Compativelmente com toda essa ideologia, a Constituição de 1988, em seu artigo 225, declara que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Dúvida, por conseguinte, não pode haver quanto ao fato de que são direitos constitucionais compatíveis o direito à propriedade privada e a proteção ao meio ambiente natural. Esses dois direitos são expressamente garantidos pela Constituição Federal de 1988. Aos aplicadores e intérpretes do Direito caberá a missão de fazer cumprir os ditos comandos e os manter em permanente contato, vigilância e aplicação.

Ronaldo Coutinho
Professor Adjunto (aposentado) da Faculdade de Direito da UERJ.

Amplo e tormentoso tema, para complexa tarefa de resumo e concisão. Mas brevíssimas anotações seguem em pequenos compartimentos:

1) questões sobre a questão: uma das marcantes características da construção do conhecimento burgues é secionar; assim, temos o ambiente "natural" e o "artificial" , divisão que remete à concepção do homem como um ser distinto - e até mesmo oposto - da natureza e o ambiente "artifical", em consequência, uma elaboração do homem, o que leva às diversas e convergentes compreensões da insolúvel contradição homem x natureza, com as derivações que resultam na crença de que o homem tem a vocação "natural" de destruir a natureza e, com isso, a si mesmo; e por uma tortuosa linha de raciocínio, chega-se ao axioma fundador de algumas tendências mais radicais (e radicalmente ingênuas, aliás) da ecologia, do direito ambiental nas versões por elas influenciado;

2) contudo, mesmo a constatação de que essa visão da relação homem/natureza ignora, na origem, o fato de que o homem é um ser da natureza e tal fato, por sua vez, infirma a hipótese acima referida, desde o princípio, deve-se considerar que no modo de produção capitalista, o caráter universal do desenvolvimento das forças produtivas expressa a especificidade de uma forma de apropriação da natureza que é a apropriação privada. O metabolismo estabelecido pelo capital, em sua relação com o meio ambiente, pressupõe riscos ambientais crescentes, inerentes a um modo de produção que necessita destruir a natureza para transformá-la em mercadoria: a água, o solo, a vegetação, entre outros elementos, a partir do momento em que são contaminados, poluídos e degradados, justificam sua transformação em bens destinados ao mercado. Por isso, a reprodução desse modo de produção não sugere processos revitalizantes, posteriores ao esgotamento dos ciclos biológicos dos ecossistemas. Registre-se, a propósito, que a exacerbação das questões ambientais, desde as últimas décadas do século passado, é um indicador da destrutividade inerente ao modo de produção capitalista, cujas crescentes demandas de produção e acumulação de riqueza vêm se defrontando com os seus próprios limites de expansão. A dinâmica destrutiva do sistema se mantém e se aprofunda a despeito das iniciativas e insistentes prescrições sobre a necessidade de preservação/conservação dos bens naturais, tais como a adoção de tecnologias de produção menos absorventes de recursos naturais e a crítica ao consumismo, face ao esgotamento progressivo dos recursos naturais e ao aumento dos resíduos de toda espécie;

3) apenas uma parte da questão proposta foi aqui abordada, ou seja, o problema da proteção ao ambiente natural, mas se evidencia, pela minha própria fundamentação teórico-metodológica, que é marxiana - e antes que entendam diferente: baseada em MARX- a concepção de que o Direito, no modo de produção capitalista instrumentaliza, por meio do fetichismo da norma, o desenvolvimento das relações de mercado. A Justiça que resulta do Direito, que é resultado e também causa da totalidade social é a Justiça que afirma as diferenças, alimenta as desigualdades produzidas na ficção de que as "partes" são "iguais" perante o sistema constitucional. Esta igualdade "perante" esconde a desigualdade que está dentro do próprio regime de propriedade privada dos meios de produção. Se, no plano constitucional formal, existe um dispositivo que diz serem "todos iguais perante a lei", este dispositivo precisa ser completamente subvertido para que a desigualdade, que existe no plano concreto da sociedade, expresse-se de fato no campo jurídico.